Aluno de biologia da UFPA, bolsista do Instituto Evandro Chagas e estagiário do Laboratório de Neuroendócrinologia

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Opinião sobre o Aborto




O aborto é ilegal. Não é aceito por nosso sistema jurídico, ele, na verdade, é criminalizado. Prevê-se na lei pena de prisão para mulher, homem e médico que realizarem tal procedimento. Quando penso nesse triste fato - patrimônio de um sistema jurídico arcaico, impregnado de hipocrisias fantasiosas e crendices incompatíveis com as necessidades reais da população - me vem quase sempre à cabeça, entre outras imagens, a daquela mulher sendo apedrejada na Somália. Estuprada, foi acusada de adultério (com os estrupadores!!!) e condenada a pena de morte por apedrejamento (abaixo).

A proibição do aborto no Brasil é uma violência unilateral do Estado contra as mulheres, vítimas de gravidez indesejada. Engravidar sem querer é um fato recorrente de grande relevância estatísitica entre brasileiras. É universal. Não está restrito a condições particulares e nem às classes mais pobres. Acontece, digamos, nas “melhores famílias”. 20% das mulheres brasileiras já abortaram. No universo em que a maioria da população é contrária ao aborto, devemos supor que deve ser elevado, ainda, o número de crianças que acabam nascendo fruto de gravidez não desejada.


Mas o número, tanto de abortos quanto de mulheres que acabam tendo filhos “indesejados”, tende a ser maior entre as mulheres mais pobres. O motivo central está no agravamento dos fatores que levam à gravidez não desejada a partir do aumento da pobreza. Os motivos que levam mulheres a engravidar sem planejar e a não desejar levar adiante sua gravidez na maioria das vezes tende a ser mais intenso entre as mulheres pobres. Vou exemplificar com três motivos hipotéticos:


1. A falta de preservativos e métodos anticoncepcionais. A camisinha e o anticoncepcional são caros, inacessíveis para a maioria das brasileiras. Apesar do mito de que eles são disponibilizados em postos de saúde, todos sabem que essa disponibilidade é bastante limitada, é constrangedora, burocrática e insuficiente. Veja essa reportagem. Pegar regularmente camisinhas num Posto de Saúde está longe de ser a realidade da maioria das brasileiras com vida sexual ativa!

2.
Educação sexual precária, principalmente em escolas públicas. Noções sobre planejamento familiar e como prevenir uma gravidez estão longe de ser universalmente disponíveis (de forma correta!) a um grande número de brasileiras, principalmente adolescentes.

3.
Vítimas de relações sexuais forçadas por seus companheiros. No Brasil 25% das mulheres sofrem violência doméstica e uma grande parte não denuncia e continua vivendo com o agressor. Muitas têm relações sexuais “forçadas” e acabam engravidando.


Temos então a reflexão daquilo que representa engravidar sem querer estar grávida. Ou ser mãe sem poder ou querer. A gravidez não é simples e nem fácil. Ela envolve bruscas modificações na estrutura global do corpo. Muda os ossos, modifica a estrutura física, as condições de vida. Ela exige cuidados especiais, acompanhamento médico, melhor alimentação, menor ritmo físico, maior vulnerabilidade a infecções, medicamentos, dentre uma enorme lista de complicantes. O parto é outro fator agravante, muitas vezes precisa ser feito através de cirurgia e expõe a mãe riscos e seqüelas.

O mais complicado de ser mãe, porém, é a responsabilidade pela vida de um ser humano. Prover, educar, amamentar, limpar, ensinar, enfim, toda dimensão doméstica dos cuidados com a prole sentam fundamentalmente sobre as mulheres. Num país que não assegura creches públicas, lavanderias públicas, restaurantes a preços populares, educação pública em tempo integral e nem acessibilidade de preço para a compra de eletrodomésticos que “agilizam” o trabalho de casa, acaba onerando exponencialmente as mulheres com o cuidado das crianças.

Ter filhos em países como o Brasil, representa, para a maioria das mulheres, abrir mão de sonhos. Trabalhar em dobro, passar necessidade. Muitas vezes ter que largar a escola, a faculdade. Entrar mais cedo no mercado de trabalho sem a devida qualificação, trabalhar mais e ganhar menos. Não é um destino fácil, de novo, principalmente para as mulheres que não têm casa ou moram em condições precárias. Para as mulheres que sofrem violência e não tem para onde correr. Mais uma boca, mais um peso, mais uma infinita responsabilidade.


Não vamos maquiar as coisas. Isso acontece toda hora. Acontece a milhões de brasileiras. Engravidar e não poder ou querer estar grávida. O Estado muitas vezes não assegura nem o devido acompanhamento médico da gravidez. Ele não vai alimentar a criança, não vai oferecer educação de qualidade, não vai vestir. São 20 milhões de brasileiros que sobrevivem abaixo da linha da pobreza (com salário menor que um quarto do mínimo!) em que o Estado não garantiu uma vida digna: educação, emprego, comida, roupa, saúde, segurança. Se alguém for responsável por essa vida, é a mãe, principalmente, na imensa maioria dos casos.


Mas, o que é sutil, é o fato de que mesmo o ato de engravidar sem querer acontecer toda hora, em toda parte, a conseqüência disso é dramática, recai sobre as costas das mães que não contam com o Estado que é deficiente e não garante a dignidade de um expressivo número brasileiros/as. O Estado é deficiente até em fornecer os meios de prevenção, educação e contracepção. À mulher cabe a responsabilidade e o trabalho pesado pelos filhos, mas não cabe o direito de decidir se quer ou não ter o filho. Levar adiante a gravidez e ser responsável pelos filhos acaba sendo uma espécie de punição, uma conseqüência forçada devido a um pequeno erro de cálculo que pode acontecer com qualquer um e de fato acontece.

É estatisticamente consolidado: no Brasil, milhares de mulheres cotidianamente, por dezenas de motivos, engravidam sem desejar. Nos caminhos da nossa lei, a essas mulheres, independente de possibilidade e independente da ausência do Estado, cabe uma solução: levar adiante a gravidez, ter um parto e ser responsável pela vida de um ser humano! Ou seja, imagine só o custo de vida dessa criança se fosse possível calcular, alem dos bens materiais, a responsabilidade, a educação, o cuidado. Agora imagina que esse é preço todo é pago involuntariamente porque, por exemplo, se esqueceu de tomar o anticoncepcional, ou a camisinha escorregou ou estourou, ou mesmo você transou sem camisinha. Fala sério! Isso é igual pena de morte por ter roubado um pão.

Não é à toa que o aborto acaba acontecendo. Em todas as classes sociais. Em toda parte. Com toda razão, para muitas mulheres não é razoável ter filho sem desejar, mesmo se engravidaram sem querer. À margem da lei, à revelia da injusta imposição do Estado, mulheres põem termo àquilo que julgam não ter condições ou vontade de arcar no momento e procuram as alternativas disponíveis de aborto. Novamente as diferenças sociais influenciam o acesso aos métodos disponíveis que são diferentes para as mulheres ricas e as pobres.

Como todo serviço clandestino, os métodos de aborto disponíveis carecem de regulamentação. Não há treinamento profissional adequado, um devido protocolo, esterilização etc. e as mulheres que se vêem obrigadas a procurar essa solução são vítimas de riscos e seqüelas. As vítimas de métodos não adequados, inclusive, oneram mais o sistema público de saúde do que se o procedimento fosse realizados pelo SUS. E as mulheres pobres acabam sofrendo com os piores métodos realizados nos piores lugares.

Legalizar o aborto não representa apenas assegurar o direito à mulher de conceber e ser responsável, junto do pai, por uma vida humana se, e somente se assim o desejar. Mas representa proteger a saúde e a vida das mulheres que não desejam levar adiante uma gravidez e que hoje tem como única saída médicos picaretas e medicações perigosas.

Infelizmente as posições que sustentam o contrário estão impregnadas de princípios religiosos e convicções individuais que não deveriam usar o poder de Estado para oprimir ninguém. Se você é contra o aborto porque tem um conceito místico da vida, então não aborta e tente convencer as pessoas a te seguirem e a não abortarem também. Mas proibir. Obrigar as pessoas a terem filhos que não desejam através do poder de polícia. Criminalizar mulheres que não têm outra alternativa. Isso é, no mínimo, uma grave violência aos direitos humanos.

93% dos brasileiros têm uma religião e a maioria delas condenam o aborto. Pelo menos 20% das mulheres já abortaram, a maioria em condições precárias com grande risco de vida. Ou seja, provavelmente muitas dessas mulheres fazem parte de religiões que condenam o aborto. Não seria melhor essas religiões tentarem convencer seus fiéis a não abortarem ao invés de pressionar os deputados e senadores a manterem leis conservadoras que agridem a autonomia e expõe mulheres a riscos de saúde. Religião deve ser de convicção individual e não uma imposição do Estado. As conseqüências de atrelar o Estado a crenças na história e em vários países responde por inúmeras agressões aos direitos humanos, a criminalização do aborto no Brasil é mais uma. O apedrejamento de vítimas de estupro como "adúlteras" é outra.






Nenhum comentário: